Denúncia do MPF, que afastou coordenador da intervenção penitenciária, revela violações de direitos humanos que vão de empalamento à perfuração dos pés
Por Clara Cerioni
MPF do Pará/Divulgação |
São Paulo — “Gente, lá dentro ninguém tá comendo nada, não tão bebendo água, todo mundo de cueca, sentado em fezes, mijo, catarro, entendeu?, pegando porrada, com spray de pimenta na cara toda hora, entendeu?, tiro de bala de borracha toda hora em cima da gente, entendeu? […] Eles não sabem que tá acontecendo isso lá dentro, eles pensam que é só uma intervenção de revista, mas não é intervenção de revista, é torturamento gente, vocês não sabem o que é uma tortura, tamo sendo torturado, a gente tamo sendo torturado, tão muito, nego ferido lá dentro, nego desmaiando, eles dizem que eles não são médico, eles não querem saber de nada, acordam o cara a bicuda, paulada, entendeu?”
O relato acima é de um detento de uma das 13 penitenciárias do Pará, que estão sob intervenção penitenciária desde julho por autorização do ministro da Justiça, Sergio Moro, e faz parte de um relatório elaborado pelo Ministério Público Federal do Pará que denuncia práticas de maus-tratos e tortura de agentes federais contra presos e presas.
O documento, divulgado nesta semana, aponta para uma série de violações de direitos humanos — que envolve violência física, moral, falta de higiene, superlotação, isolamento e privação de alimentação. Há denúncias que vão de práticas de empalamento à perfuração dos pés dos presos por pregos.
Para reunir as violações, o MPF contou com depoimentos de parentes de detidos, presos soltos recentemente, membros do Conselho Penitenciário e membros da Ordem dos Advogados do Brasil, que fiscalizam o sistema penitenciário. São 220 páginas que narram por meio de inúmeros áudios, fotografias e depoimentos as agressões praticadas.
“Por mais que eles tenham errado, todos estão pagando pelos seus erros, mas eles não merecem isso, eles estão apanhando, estão sem alimento, alguns estão nus, molhados, sem direito a nada […]. Proibiram as visitas, sendo que o preso tem direito à visita. Como eles querem que o preso se ressocialize dessa maneira, sendo oprimido, humilhado, passando fome, sede, apanhando”, escreve em carta direcionada ao MPF a esposa de um dos detentos.
As práticas de maus-tratos foram identificadas nos Centros de Recuperação Penitenciária do Pará II e III (CRPP II e CRPP III), Colônia Penal Agrícola de Santa Izabel (CPASI) e Central de Triagem Metropolitana IV (CTM IV), todos do Complexo Penitenciário de Americano, no município de Santa Izabel do Pará.
Desde 30 de julho, quando um massacre aconteceu num presídio em Altamira (PA) e terminou com a morte de 62 presos, o Ministério da Justiça autorizou o envio da força de intervenção. A função do grupo, cuja atuação foi prorrogada até o fim deste mês, é “coordenar ações das atividades dos serviços de guarda, de vigilância e de custódia de presos”. O ministério não divulga quantos são os agentes federais envolvidos.
O estado vive uma situação de superpopulação carcerária, que chegou neste ano a 17 mil detentos, número 79,5% acima da capacidade das prisões paraenses. Só o número de presos provisórios, ou seja, que ainda não tiveram uma condenação é de 43,1%, de acordo com dados recentes do Monitor da Violência.
“Não se tratam de meros protestos e insatisfações pela chegada de regime disciplinar mais rigoroso, o que não deve merecer atenção do Direito. O quadro indica medidas que excedem o necessário para a manutenção da disciplina e ordem, caracterizando abuso de poder estatal”, resume um trecho do documento.
Além de apontar as violações, o relatório do MPF tem como alvo o agente penitenciário federal escalado para o cargo de coordenador da força-tarefa, Maycon Cesar Rottava. A Justiça Federal no Pará acatou o pedido dos procuradores e determinou cautelarmente o afastamento do agente do cargo.
“Embora não conste dos autos elemento que indique que ele tenha executado diretamente os supostos atos de abuso de autoridade, tortura e maus tratos, há indícios de que, por sua postura omissiva, tenha concorrido para sua prática”, afirmou o juiz federal Jorge Ferraz Júnior, que autorizou o afastamento.
Em depoimento aos procuradores, funcionários da Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (SUSIPE), que não se identificaram por medo de represália, descrevem a situação como um “campo de concentração”.
“Os presos são proibidos de receber atendimento técnico; a Força-Tarefa é quem determina que não se faça atendimento técnico; havia todo um aparato de agentes federais com aquelas armas imensas; fomos apresentados ao WILLIAM, chamado de 001, e ao LUCIANO, chamado de 002; eles disseram que estávamos de férias por 30 dias; começamos a escutar urros, gritos, foi um horror; momentos de terror; nunca tínhamos pensado em presenciar aquilo [choro dos declarantes], foi horrível, eram gritos; é um campo de concentração; era spray de pimenta uns 2, 3 dias; os agentes federais disseram que tinham autorização para ‘invadir’ qualquer casa penal e ‘fazer qualquer coisa'”, relatou um servidor.
De acordo com o relatório, a narrativa dos servidores “inaugura uma nova fase” sobre a investigação, uma vez que “antes, poderia haver discurso de que as narrativas de presos e familiares seriam fantasiosas, tendenciosas ou exageradas, com o fim de terem benefício no seu estado de liberdade”.
No entanto, com os depoimentos dos funcionários que “como todos servidores públicos, possuem fé pública, o cenário fático probatório ganha maior confiabilidade e credibilidade”.
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